Pode-se dizer que a voz é uma das principais forças do teatro de rua. Um ator de praça deve
comunicar claramente, e por vezes falta microfones e equipamentos de som. Isto no passado nem
existia, sendo o encenador obrigado a soltar a voz para segurar a audiência ali presente. No caso de
teatro de bonecos temos uma agravante a mais. A torda ou tenda, cria uma parede para as ondas
sonoras, o que obriga o mamulengueiro à contar para fora da boca de cena a fim de comunicar com
a assistência. Isto obriga o mesmo a contar forte, de forma aguda, pois cantar grave não reverbera, e
contar um canto bem empostado, para que sua fala chegue à todos e não haja dispersão dos
ouvintes. O recurso microfonado é um advento das últimas décadas, nos primórdios tudo era no gogó,
assim como os palhaços dos Pastoris e capitães de Cavalo Marinho, que prestam de referência para
o Mamulengo, não só no jeito de cantar, como no repertório e arquétipos. É comum notarmos a
apropriação de tipos do Cavalo Marinho por bonequeiros populares, como é o caso do que acontece
na Zona da Mata norte-pernambucana. Tipos populares como Catirina passam por ambos os
folguedos, sem conseguirmos dizer quem veio primeiro, até porque não a relevância na origem, mas
na peculiaridade do tipo e seu poder de encantar e perpassar diversas manifestações populares.
Os dois palhaços do Cavalo Marinho, Mateus e Bastião com suas bexigas de porco, também
encontram lastro no Mamulengo. Mateus é o músico mais importante da orquestra popular
composta de bombo (zabumba), triângulo, sanfona de oito baixos, ou rabeca ou pife, e por vezes
entra tem também o mineiro, ou ganzá. Sua importância se dá por conversar e interagir fortemente
com os bonecos, dos quais é cumpadre. Mateus, por sinal vai ser encontrado lá no Boi de Mamão
do litoral catarinense. Lá ele é Pai Mateus, com vaqueiros, a Bernúncia e um cordão de bichos.
Além do Cavalo Marinho, há fusão de outros folguedos como o Maracatu, que traz uma
calunga, nome para boneco no Rio Grande do Norte, como guardiã do batalhão. Zé de Vina, de
Lagoa do Itaenga, em uma de suas cenas, entra com um grupo de caboclos de lança do Maracatu,
cantando a música do Caboclo Iarubá, que no Cavalo Marinho Estrela de Ouro, da região de
Condado, é tema cantado numa hora importante da brincadeira, quando o capitão deita sobre uma
cama de cacos de vidro. Ou seja, as associações de temas com tipos é livre e não traz qualquer
parâmentro estabelecido. A pesquisadora Adriana Schneider Alcure (UFRJ) escreveu um artigo
entitulado “O Universo compartilhado de brincadeiras da Zona da Mata pernambucana” onde
descorre acerca deste tema, citando diversos tipos e seu trânsito pelos brinquedos populares.
O que percebemos é um certo padrão no jeito de recitar as loas, de forma aguda e estridente
para chegar no fundo da platéia, e assim comunicar com dignidade. Além das loas ou glosas de
aguardente, os tipos choram de forma longa e exagerada, salvo algumas excessões como o Inspetor
Peinha que tem um jeito mais afobado e contraído, trazendo um discurso mais contido, preso.
Abrigar personagens de outras freguesias, consequentemente traz o modo de agir do brincador, o
que influi na forma de cantar e interagir com a população.
Além de lidarem com a tecnologia da escassez tão comum, onde se tem pouco pano para
tanta figura, e onde se tem pouca valorização por vezes faltando o de comer no prato, muitos grupos
não tem equipamento de som, o que obriga a ter uma voz voltada para o improviso de não se ter o
som amplificado, na hora de botar o brinquedo. Para os antigos, que começaram a brincar com
idade entre 10 a 14 anos, cantar forte e agudo, não é problema pois a vida sempre foi assim. Muitos
que usam equipamento de som, usam o microfone tradicional de pedestal, tendo que fazer um
espiral de arame grosso para fixar o mesmo no pescoço. Quando usam microfone auricular ou de
lapela é porque o evento tá bancando, salvo raras excessões, como é o caso do mamulengueiros do
sul, com mais recursos para brincar.
Hoje usam uma mala de bonecos, por causa do avião. Mas botar o Mamulengo completo
significa usar dois baús de personagens, o que denota tamanha versatilidade dos mesmos em mudar
as vozes e criar uma vasta de possibilidade para dar vida àquela quantidade enorme de figuras onde
se encontram velhos, coronéis, raparigas, senhoras, heróis e até animais.
No mamulengo não tem título da peça, o nome é o nome do brinquedo: Invenção Brasileira,
Presepe de Fala, Riso do Povo, Nova Geração, Fulô do XicXic, Alegria do Povo, e por ai. Quando
se vê um mestre mamulengueiro dando título para sua brincadeira, costuma ser um nome genérico
para atender a determinado Festival, pois nos sítios do interior, nada disso é solicitado, nem levado
em consideração. Não se tem no encenador popular as chancelas que se vê no teatro acadêmico tais como:
diretor, dramaturgo, coreógrafo, arranjador, diretor vocal, diretor de cena, produtor musical, nada
disso se faz presente no Mamulengo. O Mestre Mamulengueiro traz intrinsecamente as funções de
apresentador, criador, pesquisador, cantador, improvisador, encenador, manipulador, compositor,
produtor cultural e administrador. Não há Mestre Mamulengueiro que não saiba cantar, ou que não
saiba improvisar com uma frase solta por alguém da platéia. O Mestre pega aquela frase, guarda,
depura, e daqui 2 minutos devolve a mesma, dentro do assunto, arrancando risadas da platéia. Como
disse um dos grandes Mestres deste ofício: para brincar Mamulengo tem que ser poeta!
Mamulengo é isto, uma pluma leve flutuando no vento. Sem dramaturgia linear, é composto
por blocos que representam os personagens-tipo com seus dramas, loas e músicas, podendo se
montado com a mesma aleatoriedade de um jogo de empilhar os cubos. Se um chato tenta
atrapalhar a brincadeira, logo surge um boneco cara de pau, que vai arranhar a dignidade daquele pé
de cana, convidando este a ter compostura. São estas as armas do Mamulengueiro: a voz, o
improviso e o boneco. Com uma Qutéria rodando na boca de cena, e um xote na boca bem gostoso
de cantar e de escutar, aquela boneca de samba pode ficar mais de 3 minutos girando que ninguém
arreda o pé. É uma poesia em movimento. Um recorte onírico que encanta e fascina.
A voz modula de tipo para tipo, se é um palhaço ou um covarde, a voz é anasalada. Se é um galã, a
voz é adocicada. Se for um velho, a voz é gutural. Se for uma mulher da vida, solta-se a franga e faz
uma voz bem afeminada. E quanto mais exagero e esculhambação, mais a platéia se diverte,
fazendo a alegria dos ali presentes.
O Mamulengo que já foi a televisão do interior nordestino como dezenas de seguidores.
Hoje agoniza, tendo poucos representantes. Mas J. Borges parafraseou uma frase de Nelson
Sargento que diz “o samba agoniza, mas não morre”, dando a entender que o cordel está no mesmo
cenário, o que pode se estender ao nosso querido Mamulengo, que ganha um fôlego novo com a
titulação de Patrimônio Imaterial em 2015, o que esperamos que estimule a salvaguarda desta
riqueza para as gerações vindouras, que ganha força e renovação na capital federal e em alguns
estado do Sudeste.