A palavra folclore provém do neologismo inglês folk-lore (saber do povo) cunhado por William John Thoms, em 1846, para denominar um campo de estudos até então identificado como “antiguidades populares” ou “literatura popular”.
Nesse sentido amplo de “saber do povo”, a idéia de folclore designa muito simplesmente as formas de conhecimento expressas nas criações culturais dos diversos grupos de uma sociedade. Difícil, portanto, dizer onde começa e onde termina o folclore, e muita tinta já correu na busca de definir os limites de uma idéia tão extensa. É o frevo, o chorinho, o xote, o baião, a embolada, mas será também o samba, o funk, o rock? É o Natal, a Páscoa, o Divino, o Bumba-meu-boi , mas será também o desfile das escolas de samba e o festival dos Bumbás de Parintins? É o artesanato em barro, madeira, trançado, mas será também a arte individualizada de Louco, o artista baiano Boaventura da Silva Filho (1932-1992) ou de G.T.O, o artista mineiro Geraldo Teles de Oliveira (1913-1990) ?
A verdade é que, como sempre ocorre, a tentativa de definição dessa área de conhecimento pela postulação de uma natureza inerente a um objeto, no caso "O FOLCLORE", não leva a lugar nenhum exceto a uma infindável discussão acerca de suas fronteiras (isso sim, mas aquilo não; isso talvez, aquilo nunca, ou quem sabe algum dia se observadas determinadas condições) que insistem em se desfazer assim que constituídas. A discussão interessante situa-se num outro plano.
É preciso compreender o folclore e a cultura popular não como fatos prontos, que existem na realidade do mundo, mas como um campo de conhecimentos e uma tradição de estudos. Isso quer dizer que essas noções não estão dadas na natureza das coisas. Elas são construídas historicamente, dentro de um processo civilizatório, de acordo com diferentes paradigmas conceituais e, portanto, seu significado varia ao longo do tempo.
Para se ter uma idéia dessa variação do que em cada época foi considerado como “folclore”, basta lembrar que aqui no Brasil, no começo do século XX, os estudos de folclore e da cultura popular incidiam basicamente sobre a poesia e a chamada literatura oral. Mais tarde veio o interesse pela música, e mais tarde ainda, lá para meados do século, o campo se ampliou com a abordagem dos folguedos populares. Nos dias de hoje, a tendência é uma ampliação ainda maior, ou melhor, um deslocamento do foco do interesse, por conta de uma visão antropológica e não tipificadora da cultura, para a qual importam mais os significados que as coisas têm para as pessoas que as vivenciam do que a construção de uma classificação de suas características, geralmente baseada em critérios externos e estanques.
As noções de folclore e de cultura popular‚ e com elas os fatos culturais que designam, são produtos históricos. Resultam de um longo processo, que atravessa a Idade Moderna ocidental, de afastamento das elites européias de um universo cultural amplo do qual até então também participavam. O discurso sobre a cultura popular ganhou seus contornos atuais no momento em que se reconheceu a existência de uma distância entre o saber das elites e o saber do “povo”. O propiciador dessa novidade foi o Romantismo, poderosa corrente de pensamento que se desenvolveu a partir da Europa na segunda metade do século XVIII. Valorizando a diferença e a particularidade, o Romantismo associou-se aos movimentos nacionalistas europeus em oposição ao ideal de uma razão intelectual universal valorizado pelo Iluminismo.
Na visão romântica, o povo seria o elemento primitivo, comunitário e autêntico, encontrado, sobretudo, no mundo rural. O folclore e a cultura popular abrigariam nostalgicamente a totalidade integrada da vida com o mundo, rompida no mundo moderno. Nessa perspectiva, folclore/cultura popular e cultura de elite opõem-se, ainda que de modo complementar. A questão pode tornar-se ainda mais complexa se introduzirmos nesse quadro de reflexão o grande demônio corruptor geralmente denominado cultura de massa, com relação ao qual ambos os níveis de cultura - popular ou de elite - exibiriam uma aura de relativa pureza. Com essa observação podemos também imediatamente perceber como toda essa discussão está perpassada por valores morais geralmente pré-concebidos.
Na atualidade, o modelo interpretativo “de duas camadas” (cultura popular/folclore versus cultura de elite) está unanimemente superado, e mesmo estudiosos e pesquisadores que se vêem filiados à tradição romântica, são unânimes em afirmar que tanto as culturas do “povo” e as culturas das elites são variadas, como a fronteira entre elas é imprecisa e permeável. Por isso mesmo a atenção analítica deve se concentrar não na oposição mas na interação existente entre níveis e circuitos culturais distintos. Mikhail Bakthin, com seu livro A Cultura Popular na Idade Média (São Paulo: Ed. Hucitec, 1987), belo estudo sobre a obra de François Rabelais escrito em 1920, é o inspirador dessa mudança de ênfase, que efetua considerável transformação na visão conceitual do popular.
Nessa perspectiva analítica de forte apelo antropológico, é pouco rentável dividir a cultura em “popular”, “de elite”, “de massas” etc.... Trata-se antes, como queria o antropólogo Marcel Mauss, no “Ensaio sobre a dádiva” escrito em 19236, de perceber os fatos da cultura como processos sociais totais, ou seja, processos que abarcam em sua realização diferentes aspectos da realidade (econômicos, políticos, jurídicos, morais, estéticos, religiosos entre outros). Trata-se de procurar compreender como esses diversos aspectos e níveis diferenciados de cultura se articulam em processos sociais concretos de forma muitas vezes surpreendente. Que o digam, por exemplo, os bailes Funks, e os desfiles das grandes escolas de samba no carnaval do Rio de Janeiro.
Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti